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As redes sociais se tornam instrumentos de polarização. É preciso rever a lógica do engajamento

AS REDES SOCIAIS ENFRENTAM O MAIOR ESCRUTÍNIO DESDE QUE SURGIRAM, APONTADAS COMO INSTRUMENTOS DE POLARIZAÇÃO. PARA MUITOS, A SOLUÇÃO ENVOLVE REVER A LÓGICA DO ENGAJAMENTO A QUALQUER CUSTO

CRISTIANE MANO

EM ARTIGO PUBLICADO no jornal The Wall Street Journal no dia 11 de janeiro, o presidente americano Joe Biden teceu argumentos contra o que, para ele, representa um risco ao país e ao planeta. O tema não era a inflação, nem conflitos armados ou o aquecimento global. E sim as redes sociais. Um crítico das plataformas, ele mencionou – entre outros pontos – preocupação com regras, ou a falta delas, na gestão de dados pessoais e a moderação de conteúdo extremista. Para conter essa lista de ameaças, o democrata conclamou congressistas de todas as vertentes políticas a votar de maneira unida numa legislação capaz de regular esse segmento e acabar com o que ele chama de “abusos das big techs”.

Para tornar os questionamentos ainda mais quentes, em dezembro executivos da chinesa Bytedance, controladora do Tiktok, revelaram ter investigado dados pessoais de dois usuários americanos da plataforma – numa tentativa malsucedida de encontrar coincidências geográficas entre eles e suspeitos, dentro da companhia, de terem vazado informações confidenciais. Em meio aos pedidos de ser banida nos Estados Unidos, a companhia garantiu que os envolvidos na investigação foram demitidos. Ao mesmo tempo, a chegada de Elon Musk ao comando do Twitter causou a suspensão de diversas regras e políticas que vinham sendo implementadas para evitar a propagação de fake news e discursos de ódio. Entre outras medidas, o empresário desmantelou um esforço interno iniciado em 2019, por Jack Dorsey, fundador e EX-CEO da rede, com a intenção de encontrar uma maneira de “medir a saúde da conversa” online, como definiu. O projeto Redirect havia sugerido, por exemplo, colocar mensagens pop up antes que alguém pudesse compartilhar posts considerados extremistas. Sob a gestão de Musk, o time foi diluído – e o projeto engavetado. O algoritmo foi revisto, junto com regras de banimento de usuários polêmicos, como o ex-presidente americano Donald Trump. Até agora, milhões de usuários debandaram, e com eles boa parte dos anunciantes. Nada disso parece conter a disposição de Musk em seguir pautado exclusivamente por suas convicções.

A preocupação de reguladores e especialistas ganhou relevância na mesma proporção do alcance das redes. A Meta congrega hoje quatro em cada dez habitantes do planeta. O Tiktok, em cinco anos de existência, atinge dois em cada dez. Com bilhões de pessoas diariamente postando vídeos, fotos ou mensagens de texto, as redes deixaram há muito tempo de ser apenas um espaço de comunicação entre amigos. A escala e o poder de mobilização das redes sociais, um dos fenômenos mais relevantes da atualidade, tornou-se mais evidente em âmbito global após a Primavera Árabe, há uma década. Naquele momento, parte da população de países como Tunísia, Egito e Líbia se voltou contra os governos autoritários em manifestações mobilizadas em grande parte nas redes, como Facebook e Instagram.

Nos ataques ao Capitólio, em 2020, diversas plataformas – incluindo o Tiktok – foram usadas pelos extremistas, concluiu um relatório do governo americano. Nos recentes ataques em Brasília, algo semelhante ocorreu, sobretudo com o uso de serviços de mensagem como Whatsapp e Telegram. Diante da constatação desse poder, governos totalitaristas, como o russo, baniram Facebook e Instagram. Meses antes da decisão, em 2022, a Meta confirmara que havia reduzido o controle ao discurso de ódio contra soldados russos e Vladimir Putin em relação à guerra contra a Ucrânia. Segundo a companhia, as regras se aplicavam apenas a pessoas postando dentro do território ucraniano.

A visibilidade de situações como essa ajudou a alimentar a tese de que as redes não apenas amplificam de maneira passiva ideias extremistas. Mais especialistas

defendem que essas plataformas têm uma parcela relevante de responsabilidade no aumento da polarização social nos últimos anos.

Para os críticos, a culpa está nos algoritmos. Embora os detalhes sejam particulares a cada rede e desconhecidos do público, sabe-se que mensagens com mais engajamento – ou seja, mais reações, comentários e compartilhamentos – em geral aparecem primeiro no feed dos usuários. Muitas vezes, essas mesmas mensagens também são as mais polêmicas e extremistas. O jornalista Max Fisher, dedicado à cobertura do tema pelo jornal americano The New York Times, destrinchou essa argumentação no livro The Chaos Machine (algo como “A máquina de caos”, sem tradução para o português). “A quantidade de segundos no seu dia nunca muda. A quantidade diária de conteúdo de redes sociais, no entanto, dobra a cada ano. Se sua rede produz 200 posts e você pode ver apenas metade, é provável que veja a metade mais raivosa. No próximo ano, a quantidade dobra de 200 para 400, e você verá a parcela 25% mais raivosa. Com o tempo, sua impressão é de que sua comunidade está radicalmente mais extremista e você também”, afirma.

EFEITO CONTÁGIO

Chris Bail, sociólogo da Universidade Duke, no livro Breaking the Social Media Prism (“Quebrando o prisma das redes sociais”, sem versão para o português) também defende essa espécie de efeito contágio. Mas o processo é menos mecânico do que pode parecer. Bail explica que a exposição a opiniões opostas com frequência só reforça as crenças iniciais das pessoas, com uma dose de extremismo adicionada. Em 2017 e 2018, Bail comandou diversos experimentos pelo Polarization Lab, da Universidade Duke. Num deles, 1.220 usuários do Twitter, nos Estados Unidos, foram recrutados aleatoriamente para seguir um “bot”, espécie de robô cuja missão era postar mensagens, dedicado a publicar opiniões políticas contrárias às que eles tinham. Cada um deles recebeu conteúdo novo a cada hora durante um mês. Ninguém sabia qual era o objetivo final, mas recebiam US$ 11 por dia para seguir o robô e US$ 18 de bônus se pudessem lembrar o que a conta havia postado.

Antes e depois do estudo, pesquisadores fizeram diversas perguntas aos participantes com um objetivo: saber se, ao ouvir argumentos radicais de uma linha de pensamento diferente, sairiam daquele período mais moderados. O resultado foi o oposto. Republicanos se enviesaram ainda mais à direita. Democratas se moveram ainda mais à esquerda. A equipe aprofundou o estudo mais tarde, fazendo entrevistas pessoais e o rastreamento do comportamento online dos participantes. Pesquisadores descobriram que republicanos se tornaram mais conservadores porque se sentiram ameaçados por liberais que encontraram online, e vice-versa. Eles sentiram que “havia uma guerra em curso”, nas palavras de Bail. “E por isso tinham de escolher um lado.”

ALTERAR OS ALGORITMOS NÃO É UMA DECISÃO TÃO TRIVIAL – ENVOLVE DESFAZER MECANISMOS QUE LEVARAM AS REDES AO SUCESSO

PARA PESQUISADOR, A EXPOSIÇÃO A DISCURSOS DE ÓDIO LEVA À SENSAÇÃO DE QUE “HÁ UMA GUERRA EM CURSO” E É PRECISO “ESCOLHER UM LADO”

“BRIDGING SYSTEMS”

Online, há mais ataques e linguagem provocativa do que na vida real, outro fator que só inflama a sensação de ataque e incentiva a polarização. Na opinião de Bail, ajudaria muito se moderados fossem mais ativos nas redes sociais, com o argumento de que eles poderiam equilibrar as visões.

A solução definitiva, para ele, é mudar o motor dos algoritmos de modo a promover posts capazes de fazer a ponte entre visões políticas distintas. Não é uma decisão trivial interferir em mecanismos que ajudaram a construir a popularidade das redes – como a inteligência capaz de trazer mais conteúdos afinados com as preferências de cada usuário. Um documento oficial produzido pelo governo americano após a invasão de extremistas no Capitólio, em 2020, aponta que os algoritmos e o layout do Tiktok facilitam que mesmo conteúdos gerados por usuários com poucos ou mesmo nenhum seguidor podem ter uma quantidade relevante de views. O recurso “for your page”, que recomenda conteúdo baseado no histórico de atividade de cada um, permite que isso aconteça e torna os mecanismos de moderação ainda mais complexos. O documento descobriu que extremistas usaram o Tiktok para espalhar informações sobre levar armas e acessar a Casa Branca por meio de túneis.

O pesquisador Aviv Ovadya, associado ao Berkman Klein Center for Internet & Society, da Universidade Harvard, também acredita na mudança dos algoritmos como única solução. “Sempre existe um algoritmo decidindo o que as pessoas veem, e o filtro nunca é neutro. Mesmo um feed em ordem cronológica prioriza os posts mais recentes e direciona a atenção para usuários que postam mais frequentemente, em oposição àqueles que levam mais tempo para lapidar seus pensamentos”, afirma. Para Ovadya, os algoritmos estão reforçando o extremismo ao redor do planeta e não precisa ser assim. “As redes não precisam nos dividir”, diz.

Ovadya se juntou a Luke Thorburn, do King’s College, em Londres, para desenvolver o que chamaram de “bridging systems” – numa tradução livre, sistemas de pontes. Nesses sistemas, os algoritmos seriam desenhados para dar mais visibilidade a posts que consideram lados diferentes da mesma discussão e falam com diversas audiências, em contraposição à valorização de posts enviesados que ganham atenção a qualquer custo.

Enquanto o algoritmo se mantiver em segredo, haverá a dúvida sobre suas consequências. “As plataformas não fornecem transparência suficiente para permitir que o público e os pesquisadores entendam como e por que essas decisões são tomadas, seus efeitos potenciais sobre os usuários e os perigos reais que essas decisões podem representar”, aponta um recente documento emitido pela Casa Branca em defesa da regulação. Tudo indica que por muito tempo os algoritmos devem continuar a multiplicar a discórdia dentro e fora das redes.

EDITORIAL

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2023-02-03T08:00:00.0000000Z

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