Epoca Negocios

PROJEÇÕES APONTAM QUE O TIKTOK PODERÁ ULTRAPASSAR AS RECEITAS COMBINADAS DA META E DO YOUTUBE EM 2027

PARA ALÉM DA SEQUÊNCIA FRENÉTICA DE VÍDEOS, A REDE POSSUI COMUNIDADES COMO A #BOOKTOK, COM MAIS DE 77 BILHÕES DE VIEWS

da tecnologia da China”, sem versão para o português).

Para Connie Chan, uma das sócias da gestora de capital de risco Andreessen Horowitz, dedicada ao mercado chinês, o fenômeno Tiktok é o primeiro e mais claro exemplo da aplicação da inteligência artificial como produto, e não a serviço de um produto. “Da mesma forma que o Wechat inaugurou a era dos ‘superaplicativos’, a Bytedance inaugurou a era dos aplicativos de consumo de IA”, diz Chan, em artigo publicado no site da gestora. É a inteligência artificial quem decide quais vídeos serão assistidos pelos usuários. E é justamente a decisão – ao contrário da sugestão, como fazem outras redes sociais e plataformas de conteúdo – que define o poder do Tiktok.

Pode parecer uma diferença sutil. Mas é a abordagem que faz com que os usuários acessem conteúdos sobre temas que nunca pesquisariam explicitamente. É também a partir da IA que o app aprende sobre o usuário enquanto ele navega e, a partir daí, entrega o conteúdo que ele mais gostaria de ver – mesmo antes de ele próprio saber que gostaria de assistir a algo. “É só matemática”, afirmou o CEO Shou, numa rara e recente entrevista. “O algoritmo com aprendizado de máquina considera todos os seus sinais comportamentais, baseado na sua experiência usando o app, e a máquina recomenda conteúdo. Também há mecanismos de dispersão, para você não ver a mesma coisa o tempo todo.” O objetivo é entreter os usuários por mais tempo. Nos Estados Unidos, eles passam em média 46 minutos por dia no aplicativo, pouco acima do Youtube e 16 minutos mais do que no Facebook e no Instagram.

15 SEGUNDOS DE FAMA

Outro efeito do algoritmo do Tiktok é a descoberta e a promoção do sucesso viral de criadores desconhecidos com uma frequência maior do que em outras redes. Enquanto as outras destacam e premiam quem tem mais seguidores, o Tiktok leva em conta sobretudo o interesse que o conteúdo pode despertar em determinado usuário. A diferença se reflete nas principais celebridades de cada plataforma. Atletas, cantores e atores povoam o topo da lista dos influenciadores mais populares do Facebook (veja na pág. 58). No Tiktok, os mais famosos são os próprios tiktokers. O mais popular de todos é Khaby Lame, comediante senegalês que não fala em seus vídeos, e tem 146 milhões de seguidores. No Brasil, Iran Ferreira, o Luva de Pedreiro, tornou-se uma celebridade com 45 milhões de seguidores dois anos após começar a postar os primeiros vídeos jogando futebol num campo de várzea (veja mais na pág. 80). “Estávamos na era social, agora estamos na era da participação, na qual a comunidade influencia a própria comunidade”, diz Gabriela Comazzetto, head de global business solutions do Tiktok para a América Latina, com sede em São Paulo.

Para os rivais, mudar a lógica do algoritmo para tentar captar parte dessa nova audiência não é uma decisão trivial. Ainda assim, o terremoto causado pela plataforma chinesa foi tão grande que mobilizou os concorrentes a tomarem uma atitude. O Instagram ensaiou mudar a lógica de alimentação do feed, ao tirar a ordem cronológica que orientava a organização das mensagens. Mas teve de voltar atrás e deixar a opção de mudança a critério do usuário, depois que muitos demonstraram insatisfação. Outras características mais fáceis de copiar, como a possibilidade de postar vídeos curtos, espalharam-se pelo mercado. Em 2022, foram criados o Instagram Reels e o Youtube Shorts. “Ao forçar a mudança de Instagram, Facebook e outras redes, o Tiktok deve deixar como legado o fim da internet social”, escreveu Cal Newport, professor de ciência computacional da Universidade de Georgetown, em Washington, e autor de best-sellers sobre o tema, num

recente artigo publicado na New Yorker.

Além de servir de referência, o Tiktok também tem sido rápido em copiar o que dá certo. Recentemente, incorporou uma funcionalidade semelhante à do francês Bereal, que ganhou popularidade ao mandar alertas durante o dia para os usuários pedindo que postem vídeos reais do que estão fazendo naquele momento. A ideia é representar um contraponto ao mundo perfeito e sempre “instagramável” representado nas outras redes. Lançado em 2019, o Bereal tem 73,5 milhões de usuários mensais, e faz bastante sucesso com os mais jovens nos Estados Unidos, no Reino Unido e na França, de acordo com o site especializado Business of Apps. Em outubro de 2022, tornou-se o app mais baixado na loja da Apple nos Estados Unidos. Mais recentemente, com a barreira de escala em grande parte vencida, o Tiktok inaugurou a função “Friends Tab”, que filtra os vídeos produzidos apenas por conexões daquele usuário – somados, segundo o próprio site da rede, a mais sugestões de conexões baseadas no seu histórico. Para além dos feeds frenéticos, a rede também argumenta que já conseguiu desenvolver comunidades gigantes em torno de alguns temas, como a #Booktok, com mais de 77 bilhões de views.

DE FRENTE COM A AMAZON

O novo caminho de expansão do aplicativo promete causar disrupção em outros setores. Os avanços no e-commerce aconteceram primeiro na rede que deu origem ao Tiktok, a Douyin, que opera exclusivamente dentro da China. Em outubro, a rede inaugurou a aba Tiktok Shop na Inglaterra e na Indonésia. Embora não tenha sido um sucesso estrondoso, há especulações de que os planos incluam abrir operações em outros países, como o Brasil. A reação veio na mesma hora. Em dezembro, a Amazon lançou nos Estados Unidos a ferramenta Inspire. Ainda em testes, a função permite que os consumidores assistam a vídeos curtos produzidos por influenciadores e marcas no estilo Tiktok.

Encontrar novos caminhos para monetizar o negócio tem sido uma necessidade, diante da queda nas receitas publicitárias. Até porque há razões além de circunstanciais para esse arrefecimento. No primeiro caso, está a crise econômica em grandes mercados como Estados Unidos. No segundo, a pressão regulatória no setor pode inibir as possibilidades das redes de angariarem informações sobre os usuários – matéria-prima para vender anúncios mais assertivos. Em 2022, a receita mundial de anúncios em redes sociais foi de US$ 130,24 bilhões, um aumento de apenas 12,4% ante 2021. É o menor ritmo de crescimento nesse setor da história, de acordo com a consultoria de dados Statista.

Sob a perspectiva dos clientes, esse parece ser um passo natural. Em 2022, segundo levantamento da Opinion Box com a empresa de marketing digital All In, 71% dos brasileiros já usavam as redes sociais de alguma forma para fazer suas compras. Outra pesquisa do final do ano passado, feita pela plataforma de ecommerce Nuvemshop, aponta que 97% dos comerciantes brasileiros que vendem pela internet usam o Instagram para divulgar seus produtos; 71% lançam mão do Facebook; e 63%, do Whatsapp. No caso da Meta, a operação brasileira do Whatsapp, presente em 99,2% dos smartphones brasileiros, de acordo com a mais recente edição da pesquisa Panorama Mobile Time/opinion Box, de 2022, tornou-se um campo fértil para novas funcionalidades nesse sentido. No final do ano

passado, a Uber, por exemplo, começou a aceitar pedidos de carros pelo Whatsapp em algumas cidades do Nordeste onde tem um público menor – é difícil convencer os usuários a baixar o seu próprio app, mas dá para aproveitar a onipresença do aplicativo de mensagens da Meta. “Há exemplos variados, como o de empresa de treinamentos corporativos que virou uma empresa de educação pelo Whatsapp, com interações, provas e tudo”, afirma Guilherme Horn, Head do Whatsapp na América Latina e colunista da Época NEGÓCIOS (leia artigo na pág. 60). Mais recentemente, a rede decidiu ampliar a possibilidade de criar grupos com até 5 mil participantes, a ser implementada de forma gradual.

POLÊMICAS

A popularidade do Tiktok segue a proporção das polêmicas em que está envolvido. Existem questões de toda a ordem, que afetam a indústria como um todo, mas em especial a empresa chinesa. A mais barulhenta delas é a pressão por regulação para restringir o acesso e o uso de dados pessoais dos usuários pelas plataformas. No caso de uma companhia com sede na China, país autoritário com conflitos frequentes com os Estados Unidos, a possibilidade de deter as informações de centenas de milhões de cidadãos tem sido vista como uma ameaça. Numa discussão pública que começou com o ex-presidente Donald Trump, em 2020, a possibilidade de banir a rede

do país vem ganhando força. Na gestão de Joe Biden, o apelo tem sido na direção de negociar mudanças efetivas, mas menos radicais. Como parte das negociações, o governo americano exigiu, por exemplo, a contratação de um inspetor de código-fonte e três auditores, incluindo um dedicado à segurança cibernética e outro para garantir que os dados de usuários dos Estados Unidos nos servidores atuais do Tiktok na China sejam excluídos após migração para a empresa americana Oracle. Até que o acordo esteja finalizado, no entanto, não existe nenhuma garantia que as negociações mudem de rumo e as pressões por uma solução mais drástica ganhem força. Em dezembro, a Câmara dos EUA proibiu a instalação do Tiktok nos celulares de deputados e funcionários. “Construímos uma solução sem precedentes para lidar com o problema. É extremamente cara e incrivelmente desafiadora”, afirmou Shou, o CEO. Ele vê aí uma tendência de longo prazo, diante da tensão geopolítica global. “Não vai funcionar assim para todo país, mas acho que, no futuro, dados que pertencem a uma região vão ficar armazenados naquela região.”

Outra corrente, com pressão mais distribuída entre todas as redes, protesta contra a falta de moderação eficiente do conteúdo – o que resulta na proliferação de discursos de ódio, fakenews e até de perigosos desafios que recentemente levaram crianças e adolescentes à morte (veja reportagem na pág. 64). “Temos responsabilidade de investir mais para nos assegurarmos que qualquer desses conteúdos inadequados para jovens sejam barrados pela moderação da plataforma”, disse Shou. Ele já afirmou também que seus filhos, de 6 e 8 anos, são “novos demais” para usar o Tiktok.

A recente e tumultuada chegada de Elon Musk ao comando do Twitter, até então uma companhia de capital aberto, também esquentou os pedidos por mais regulação. Uma dúvida até então teórica ganhou vida: e se do dia para a noite o “dono” do algoritmo de uma plataforma poderosa se torna uma única pessoa pouco afeita à transparência e a tomar decisões compartilhadas? Com a proposta de surgir como antídoto aos riscos de governança, uma nova geração de startups está florescendo no negócio do desenvolvimento de protocolos de blockchain para redes sociais. Algumas delas se assemelham muito a apps já famosos. O Mastodon, por exemplo, mimetiza o Twitter, enquanto o Signal parece com o Telegram e o Whatsapp, e o D.tube se coloca como um Youtube de plataforma aberta. Outras criam novas comunidades. A Binded serve para fotógrafos registrarem e trocarem imagens que produzem. A Audius é uma plataforma de streaming de música que permite que os usuários criem playlists, compartilhem canções e descubram novos artistas ganhando tokens como recompensa. Dessa maneira, tenta ajudar os próprios artistas a engajar sua comunidade de fãs independentemente de suas gravadoras. O próprio fundador do Twitter, Jack Dorsey, tornou-se adepto dessa linha. Seu app Bluesky, ainda em desenvolvimento, vai usar um novo protocolo que pretende dar mais liberdade para criadores de conteúdo, desenvolvedores e usuários. Em operação desde 2016, o Mastodon, também descentralizado e com código-fonte aberto, tem visto o número de usuários e o interesse de investidores crescer. De cerca de 300 mil, o número de frequentadores ativos da rede passou para 2,5 milhões, segundo seu fundador, o desenvolvedor alemão Eugen Rochko.

Diante do que seriam os efeitos nefastos das plataformas na sociedade e nos indivíduos, alguns críticos chegam a defender que as pessoas deveriam simplesmente abandonar as redes. Um deles é o próprio Cal Newport, da Universidade Georgetown, autor do livro Deep Work. Na obra, Newport retrata as redes sociais como vilãs do tempo e da capacidade de trabalhar com concentração. Ele tem zero presença em redes sociais – e, em seu site, já avisa que pode demorar para responder e-mails. Ele encontra eco sobretudo entre integrantes da geração Z. A popular série White Lotus, da HBO Max, ilustrou o fenômeno quando mostrou o desespero de um jovem, seguido do alívio por recuperar o tempo perdido online para atividades da vida real. Os números mostram que a tendência está longe de mover bilhões de pessoas para fora das redes sociais. Mas também demonstram que os novos questionamentos em torno desse setor, que há duas décadas sequer existia, estão longe de solução fácil. E isso vale para governos, reguladores, empresas e até para as pessoas de todas as faixas etárias que se divertem com vídeos como o do “mágico” Zach King, descrito no início desta reportagem.

Com reportagem de Denyse Godoy, Juliana Causin e Marcos Coronato

CAPA | INOVAÇÃO

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