Epoca Negocios

Paulo Veras, da 99

PAULO VERAS AJUDOU A CRIAR O PRIMEIRO UNICÓRNIO BRASILEIRO. AQUI, ELE RELEMBRA AS CRISES QUE AMEAÇARAM A SOBREVIVÊNCIA DA EMPRESA E ANALISA O ECOSSISTEMA DE STARTUPS NO BRASIL

MARISA ADÁN GIL

OANO ERA 2017, o ecossistema estava em franco crescimento e começava a atrair investidores internacionais. Havia otimismo no ar, mas faltava um marco, algo que mostrasse que o Brasil estava definitivamente no jogo. Finalmente, no dia 2 de janeiro de 2018, veio a notícia: a chinesa Didi Chuxing havia comprado a empresa de transporte urbano 99. Embora o valor da transação não tenha sido revelado, a estimativa é de que fosse de US$ 300 milhões – elevando efetivamente o valor da empresa para US$ 1 bilhão. O Brasil via nascer seu primeiro unicórnio.

“Naquela época, muita gente achava que jamais teríamos um unicórnio no Brasil. Provamos que era possível. Esse foi o nosso papel”, diz Paulo Veras, 49 anos, um dos fundadores da 99, ao lado de Ariel Lambrecht e Renato Freitas. Em 2012, Veras, então com 40 anos, era o veterano da turma. Antes da 99, havia fundado duas startups bem-sucedidas, cursado um MBA no Insead e trabalhado cinco anos como diretor da Endeavor no Brasil, onde criou uma inestimável rede de contatos. “Na Endeavor, aprendi muito sobre a importância do empreendedorismo e sobre o tamanho da ambição. Se você realmente acreditar que pode ser grande, seu negócio terá muito mais impacto.” Depois da venda da 99, Veras traçou outros caminhos: passou a atuar como investidor e mentor de startups, e escreveu a autobiografia Unicórnio Verde-amarelo. Em entrevista a Época NEGÓCIOS, ele relembra os principais momentos da sua trajetória na empresa e faz uma reflexão sobre as mudanças no ecossistema de startups. “Eu sou muito otimista. Acredito que o ambiente de inovação ainda terá um impacto profundo sobre a economia do país, gerando emprego e renda. Vamos trazer prosperidade para o Brasil.”

ÉPOCANEGÓCIOS O que significava ser um unicórnio em 2018 e o que significa hoje? O que mudou?

PAULO VERAS Mudou muita coisa. A gente nem sabia se isso era possível de verdade. E essa incerteza atrapalhava os empreendedores. Ficava difícil ter acesso a capital e alcançar competitividade no cenário global. E, como muita gente no ecossistema acreditava que não poderíamos ter um unicórnio, o empreendedor também achava que não ia conseguir. A partir do momento em que teve um, já abriu a porteira e veio a manada toda (risos). O capital veio, as empresas ficaram maiores mais rapidamente, muitas fizeram IPO. Não quero dizer que hoje seja fácil construir um unicórnio. Mas, se levou décadas para surgir o primeiro, agora está saindo quase um por mês.

NEGÓCIOS Hoje há 18 unicórnios no Brasil, e também um decacórnio, o Nubank, avaliado em US$ 30 bilhões. VERAS O que me espanta é saber que o Nubank não tem dez anos de vida ainda. Antes era inimaginável pensar que um banco digital pudesse ter um valor de mercado maior do que o do Itaú. Isso mostra até que ponto pode chegar a disrupção. Prova que é possível começar do zero, com relativamente pouco dinheiro, e colocar em pé uma empresa capaz de brigar de frente – e até vencer – companhias superestabelecidas, com décadas de mercado. É uma mensagem muito forte.

NEGÓCIOS Em que momento o Brasil deixou de ser o patinho feio e começou a atrair grandes investidores?

VERAS Durante muito tempo, esse protagonismo foi da China e da Índia. Muitos fundos da Califórnia montavam times para investir nesses países. Mas, no final da década, começaram a surgir unicórnios no Brasil, e muitas empresas passaram a olhar para o mercado externo. Isso fez com que mais investidores quisessem vir para cá, aportar em empresas com potencial para conquistar mercados internacionais.

NEGÓCIOS Quais as principais razões do sucesso da 99?

VERAS A primeira razão é que o cliente sempre esteve no foco das nossas decisões. Para atendê-lo bem, você tem de ter um bom produto, fácil de usar, simples, eficiente. O [cofundador] Ariel virava noites lendo reviews na Web Stores. E voltava no dia seguinte: “Estamos com um problema aqui, o pessoal está reclamando daquilo”. E aí, claro, tem as pessoas. Um time incrível, com um perfil superempreendedor – tanto que, depois da 99, mais de 20 pessoas fundaram suas próprias empresas.

NEGÓCIOS Quais os maiores problemas que enfrentaram e os erros que cometeram?

VERAS A falta de acesso a capital foi uma das principais dificuldades. A 99 é vista como uma empresa bem-sucedida, mas, se a gente tivesse tido mais acesso a capital, teria tido muito mais sucesso. O primeiro cheque do Softbank para a América Latina foi da 99 [a empresa recebeu um aporte de US$ 100 milhões do Softbank em maio de 2017]. Hoje, eles estão lançando o segundo fundo de US$ 5 bilhões para a América Latina. Então, o cenário é outro. Era muito

SE LEVOU DÉCADAS PARA SURGIR O PRIMEIRO, AGORA ESTÁ SAINDO QUASE UM POR MÊS

difícil trazer capital para startups no Brasil. E isso foi um problema bem grave, especialmente quando tivemos que enfrentar a concorrência da Uber.

NEGÓCIOS Houve também o desafio regulatório para carros particulares. VERAS Acho que aprendemos muito com esse processo. No começo, a gente achava que tinha de seguir a lei e pronto. Se a lei não permite carro particular, não fazemos. Tínhamos um modelo de concorrência muito frágil, porque a gente seguia as regras e pagava um preço por isso, enquanto a Uber não seguia nada e surfava numa onda gigantesca. Quando decidimos ser proativos, conseguimos trabalhar com prefeituras e governos para criar um arcabouço regulatório que fosse bom para todos.

NEGÓCIOS Antes da 99, você já tinha fundado outras startups. Por que achou que essa era a ideia que finalmente ia dar certo?

VERAS Achei que a proposta em si tinha muito mérito, porque era um mercado gigantesco, e era muito difícil andar de táxi em São Paulo. Se quisesse agendar, você ligava lá na cooperativa e demorava meia hora para chegar. Então o apelo óbvio é que o mercado era imenso, tinha muito dinheiro circulando por ali, a gente estimava em R$ 20 bilhões, R$ 25 bilhões por ano. E as pessoas eram mal atendidas. Isso era o óbvio. O que não era tão óbvio era como a gente ia conseguir usar a tecnologia para resolver isso, e como a gente conseguiria se destacar da concorrência.

NEGÓCIOS Na época, o maior concorrente era o Easy Taxi. Como é que vocês conseguiram se diferenciar deles? VERAS Tínhamos um produto muito bom. As pessoas gostavam mais do app da 99 do que o da Easy Taxi. Era mais fácil de usar, mais simples, mais intuitivo, dava menos pau. Mas a gente tinha muito menos dinheiro do que eles. Além disso, nós víamos a 99 como um marketplace, que tem motoristas de um lado e passageiros do outro. A gente tratava os dois como clientes. Todas as outras tratavam o motorista como um mal necessário. Na nossa cabeça, motorista e passageiro tinham exatamente o mesmo valor. Foi uma abordagem bastante única. Muitos motoristas que atendiam aos dois apps viraram nossos aliados, indicavam o aplicativo para os passageiros: “Da próxima vez, chama a 99”.

NEGÓCIOS E aí houve, claro, as dificuldades geradas pela popularização da Uber, entre 2014 e 2016. Como enfrentaram o desafio?

VERAS Para nós, a entrada da Uber foi um baque. Aquela era uma concorrência muito mais qualificada: um player global, com US$ 10 bilhões no caixa e 3 mil pessoas na área de tecnologia. Na época, a gente tinha 15 pessoas. Era um nível de competição totalmente desigual. E não conseguimos levantar capital suficiente para enfrentá-los. Em 2016, nosso market share praticamente evaporou.

NEGÓCIOS Ao mesmo tempo, você passava por outra crise, mais pessoal [em 2014, Paulo Veras foi diagnosticado com leucemia]. Como essa questão de saúde impactou sua trajetória dentro da 99?

VERAS O custo de empreender é bem alto. O nível de responsabilidade e de estresse é muito pesado. Acabei ficando doente, mas não fui o único. Tem muitos fundadores que passam por problemas de saúde durante a jornada. No meu caso, ajudou ter montado um time superalinhado, porque a galera segurou as pontas. Continuei trabalhando durante todo o processo. As pessoas falavam para eu dar uma pausa do trabalho,

FALAVAM AS PESSOAS PARA EU DAR UMA PAUSA DO TRABALHO, MAS PARA O FUNDADOR, AQUILO

É A SUA VIDA

mas, para o fundador, aquilo é a sua vida, o que você respira. Mesmo com a empresa quase quebrando, e eu com problemas de saúde, a gente não ficou se lamentando. Em vez disso, focamos 100% em soluções – porque é isso que o empreendedor faz.

NEGÓCIOS Buscar investidores foi parte dessas soluções, certo?

VERAS Sim. Como a Didi era rival da Uber no mercado global, pensamos: “Quem sabe eles querem ajudar uma concorrente da Uber no Brasil?”. Levou tempo para construir esse relacionamento. Mas daí, quando compraram a Uber na China e se tornaram líderes de mercado por lá, começaram a olhar para o resto do mundo. E o Brasil era, e ainda é, o terceiro maior mercado do mundo para a corrida de aplicativo. Foi quando eles fizeram o investimento [a Didi Chuxing aportou US$ 100 milhões na empresa em janeiro de 2017]. Mas, na sequência, o Softbank resolveu aportar na Uber, e isso gerou uma incerteza entre os sócios. Será que a gente conseguiria dinheiro para o crescimento que havíamos planejado? Foi nesse momento, em 2018, que a Didi acabou propondo a compra da nossa parte, e de todos os outros sócios. Não foi fácil, mas foi uma decisão superconsciente. Hoje vejo que foi o melhor caminho.

NEGÓCIOS Depois da venda, você seguiu o caminho de investidor. Por quê? VERAS O empreendedor nunca pensa em se aposentar. Para ele, isso não tem a menor graça. Você quer continuar no jogo, aprendendo, fazendo coisas legais. Mas eu já estava um pouco mais velhinho, com uns 45 anos. Percebi que, se me tornasse investidor, poderia participar de uns dez projetos ao mesmo tempo – e não precisaria me envolver tanto com nenhum deles.

NEGÓCIOS No início de novembro, saiu a notícia de que o Uber teve o primeiro trimestre lucrativo de sua história. Afinal, aplicativos de transporte dão lucro ou não?

VERAS Eu acredito que até hoje não dão lucro porque, para ganhar escala, o preço baixou muito e a conta ficou muito justa. Hoje, o que estamos vendo a Uber e a 99 fazerem é tentar expandir para outras frentes de negócios. Essas companhias têm uma base de milhões de passageiros, então o que mais é possível fazer com eles? Dá para entregar comida, criar uma carteira digital... Os líderes desses negócios estão apostando em uma tese: se o serviço de transporte é tão importante e tem tanta recorrência para as pessoas, eles vão conseguir trazer o lucro de outras divisões, de outros modelos de negócio. Eu acho que é uma aposta razoável. Mas o modelo do aplicativo por si só não se sustenta, porque toda essa competição fez o preço das corridas baixar muito.

Ou a empresa reposiciona a questão do preço, ou mantém baixo só para garantir a base de usuários, e oferece outros serviços. Essa é a saída para os aplicativos de mobilidade.

NEGÓCIOS Com toda a sua experiência de Endeavor e como empreendedor, o que você diria para os executivos que sonham em ter uma startup?

VERAS Nunca houve um momento melhor para empreender no Brasil. Temos acesso a capital em escala inédita e muitos talentos com anos de experiência em startups de alto crescimento. O investimento inicial pode ser bem mais baixo, pois o acesso à tecnologia está mais barato, com facilidade de acesso a dados móveis e banda larga, e infraestrutura na nuvem. Se possível, aconselharia o executivo a trabalhar numa startup bacana por uns anos antes de abrir a própria. Daí ele pode pegar mais experiência e entender melhor se é isso mesmo que quer fazer.

PERCEBI QUE, SE ME TORNASSE INVESTIDOR, EU PODERIA PARTICIPAR DE UNS DEZ PROJETOS DIFERENTES AO MESMO TEMPO

SUMÁRIO

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