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MAIS EMPRESAS COMEÇAM A TESTAR NOVOS LIMITES DO ENGAJAMENTO À CAUSA DA DIVERSIDADE PARA SE APROXIMAR DOS CONSUMIDORES

KARAN NOVAS

Mais empresas se engajam nas causa da diversidade. Mas o cliente exige coerência

UUMA ESTATÍSTICA CHAMOU a atenção na Olimpíada de Tóquio além da distribuição das medalhas e dos recordes alcançados nos jogos realizados até o dia 8 de agosto. A quantidade de atletas autodeclarados LGBTQIAP+ atingiu o maior patamar histórico, com mais de 160 deles – entre os quais a jogadora de futebol brasileira Marta, o jogador de vôlei brasileiro Douglas Souza e a levantadora de peso neozelandesa Laurel Hubbard. Em comparação, os jogos brasileiros, em 2016, haviam registrado o mais alto número até então – 49. Pouco antes do início dos jogos, a fabricante de bens de consumo americana Procter & Gamble reuniu alguns desses atletas num debate online sobre diversidade. Ao mesmo tempo, produziu vídeos para mostrar como alguns deles decidiram falar abertamente sobre a própria orientação sexual, como o atleta britânico de salto ornamental Tom Daley. Em julho, pouco antes do início da Olimpíada, a companhia aérea Latam anunciou a contratação da estrela do futebol Marta como sua líder global de diversidade e inclusão, em um contrato de longo prazo. Não foi a primeira vez que os atletas começaram a falar abertamente sobre o tema com o apoio de grandes empresas – embora a quantidade tenha sido recorde desta vez. Anos antes, em 2018, a fabricante de eletrônicos Samsung também havia preparado uma campanha com o slogan Do what you can’t (“Faça o que você não pode”, na tradução), em que o esquiador Gus Kenworthy, com dupla cidadania, que costuma levar medalhas nas olímpiadas de inverno ora pela seleção americana ora pela britânica, diz: “Sou gay e não há nada de errado sobre isso”. Desde então, ele se tornou estrela de campanhas de grifes como Ralph Lauren e Prada.

O movimento observado em torno dos atletas ajuda a evidenciar uma virada importante na maneira como as empresas passaram a aderir a causas relacionadas a diversidade. Se alguns anos atrás falar sobre a sexualidade em público poderia fechar portas com patrocinadores, agora pode-se dizer que essa realidade começa a fazer parte do passado. Após algumas companhias pioneiras abrirem caminho, o tema e a valorização da autenticidade começam a se tornar cada vez mais universais nos mais variados setores. Há dados relevantes sobre esse movimento também entre os 42 premiados em maio deste ano no festival Cannes Lions, considerado o mais importante evento da publicidade mundial. Entre os destaques, ao menos dez trazem a diversidade e a inclusão como tema central, assinados por marcas como Mastercard, Starbucks e Mercado Livre (veja quadro nas págs. 32/33). Em 2019, foram sete abordando o tema. Em 2018, haviam sido apenas três.

Uma evidência da maturidade dessas campanhas está num dos prêmios deste ano, em que um projeto da Nike levou o prêmio chamado Creative Effectiveness (algo como “eficácia criativa”), que ressalta trabalhos que tiveram destaque criativo na edição anterior do festival e, um ano depois, provaram ter tido também grande resultado de negócios. Com o nome Dream Crazy, gerou um furor nacional nos Estados Unidos ao mostrar o jogador de futebol americano Colin Kaepernick, autor de um polêmico protesto contra a brutalidade policial contra negros ao se ajoelhar durante a execução do hino do país. Os mais críticos chegaram a postar vídeos queimando os produtos da fabricante e incentivando mais pessoas a fazerem o mesmo. No auge

da polêmica online, a companhia se manteve firme com sua mensagem inicial e chegou a dar instruções sobre como queimar o produto em segurança. De imediato, as ações da empresa chegaram a apresentar mais de 3% de queda na bolsa. Poucos dias mais tarde, porém, artistas e personalidades de diferentes segmentos abraçaram e apoiaram a marca pelo discurso, de forma espontânea. No ano seguinte, a Nike apresentou um aumento de nada menos que US$ 6 bilhões em valor de marca, tendo registrado também aumento de 31% nas vendas.

O movimento das marcas segue uma demanda dos próprios consumidores. Segundo o Visual GPS 2020, realizado pela Getty Images com a Yougov em 26 países, 80% dos respondentes declararam esperar que as empresas façam um trabalho melhor para alcançar representatividade na propaganda. Direcionando para a questão mais efetiva, 33% disseram que, nos últimos anos, boicotaram marcas que iam contra seus valores; e 34% começaram a comprar de marcas das quais não eram clientes, mas que apoiavam causas em que eles acreditavam. Ao mesmo tempo, de acordo com o levantamento “Diversidade e Inclusão”, da Qualibest, de abril de 2021, 57% dos brasileiros dizem se sentir pouco ou nada representados pela publicidade. Apenas 24% acham que alguma marca trabalha o tema de forma adequada. “A diversidade não é mais uma questão de apenas se posicionar de forma moral, mas também financeira”, diz Raquel Virgínia, CEO da consultoria de diversidade Nhaí.

Na evolução da abordagem do tema, as marcas caminham cada vez mais para não apenas retratar a diversidade nas campanhas como também assumir uma postura de mais protagonismo ao abraçar a causa. O desafio é buscar formas que sejam vistas pelo público como legítimas de se apropriar desse ativismo (veja quadro nas págs. 32/33).

Um dos exemplos de como se posicionar de forma prática e empática com iniciativas que unem o marketing e os negócios é o prêmio que a empresa de cartão de crédito Mastercard ganhou com a campanha True name, criada pela Mccann NY e comandada pelo chief marketing officer Raja Rajamannar. A campanha comunica uma medida prática que a companhia tomou no país ao passar a permitir que seus clientes imprimissem nos cartões não necessariamente o nome de batismo, mas sim aquele com que se identificam. Um gesto simples se mostrou de extrema relevância para a população trans, que agora pode usar o nome social impresso no plástico, em estabelecimentos comerciais. A ação da marca tornou o processo de escolha do nome impresso no cartão simples e digital, em comercial protagonizado por atores transgêneros e não binários.

Atuar ativamente na causa é uma medida tomada por empresas brasileiras que se destacaram também em Cannes. Dos três grandes prêmios conquistados por trabalhos brasileiros no evento, dois trazem conexão total com a diversidade. Um vencedor, o trabalho Eu sou, da Starbucks, transformou no ano passado uma de suas lojas em um cartório, para que pessoas trans que ainda tinham seus nomes antigos nos documentos pudessem atualizá-los de forma simples e legal – como já era possível fazer em seus copos de café, sem nenhum questionamento. No dia da ação, 35 pessoas fizeram o processo de renovação do documento, número sete vezes maior que a média diária para a cidade de São Paulo, segundo a companhia. “Na Starbucks, vivemos a missão de inspirar e nutrir o espírito humano todos os dias por meio do poder do café. Causar um impacto social positivo tem sido a essência da Starbucks desde o início, e é consistente com nossa crença de que podemos construir um ótimo negócio enquanto fazemos o bem nas comunidades que servimos”,

FAZER BARULHO EM TORNO DAS CAUSAS SÓ FUNCIONA SE HOUVER COERÊNCIA COM OUTRAS PONTAS DO NEGÓCIO

declara Sandra Collier, diretora de marketing, loyalty e categorias da Southrock, controladora da Starbucks no Brasil.

As restrições impostas pela pandemia fizeram com que algumas empresas tivessem de repensar a própria abordagem para manter a consistência na comunicação com um público mais diverso – um aspecto cuja relevância é unânime entre especialistas. A plataforma online de comércio eletrônico Mercado Livre passou a apoiar a causa LGBTQIAP+ há quatro anos, patrocinando a Parada do Orgulho em São Paulo desde 2018. Em 2020, a alternativa foi organizar um evento online – numa iniciativa que rendeu outro caso vencedor de um grande prêmio no Cannes Lions 2021. A empresa levou a Parada para o mundo virtual, transformando o feed do Instagram da marca em uma Avenida Paulista, endereço tradicional para a realização do evento em São Paulo, lotada com a marcação de quem não pôde ir às ruas por conta da pandemia. Além disso, a empresa contratou a cantora e drag queen brasileira Gloria Groove como madrinha do evento e para a criação de um clipe exclusivo, com mais de 60 milhões de pessoas impactadas. Para 2021, a empresa voltou a investir na data com a campanha Beijos icônicos, trazendo um filme de 2’30” com beijos de diversos casais que representam as letras da sigla, além de fotos que podiam ser baixadas e usadas de forma livre – inclusive comercialmente – por quem quisesse incentivar a causa.

Fazer barulho em torno de propósitos só funciona, de acordo com especialistas, se vier acompanhado de coerência em outras pontas do negócio e também dentro de casa. No caso do Mercado Livre, isso inclui o incentivo a comitês internos de diversidade de gênero, racial, mulheres e pessoas com deficiência. Para os clientes, a empresa passou a aceitar o nome social dentro do aplicativo, mesmo para pessoas transgênero que não tiveram seus documentos oficialmente atualizados. Também passou a oferecer um aplicativo desenvolvido com acessibilidade para pessoas com deficiência visual. “A questão da diversidade começa pela missão do Mercado Livre, de democratizar o comércio eletrônico. E a visão sobre o que é progresso, especialmente por parte do público mais jovem, está cada vez mais ligada à diversidade e inclusão”, diz Thais Nicolau, diretora regional de branding do Mercado Livre. Indo além do reforço de propósito, a iniciativa trouxe ganhos imediatos para a marca. “Vimos, em uma pesquisa junto ao Google, que pessoas

que assistiram à Parada e foram impactadas pela campanha aumentaram em 33% sua consideração em comprar mais no Mercado Livre. Além disso, nos transformamos na varejista nº 1 em que essa audiência mais confia, sendo a nº2 antes da ação”, afirma a executiva.

“O consumidor está atento e ávido. Se ele olha a campanha e acha legal, mas entra numa loja e não vê pluralidade nem nos produtos nem nos consultores, essa marca é excluída na hora. Se a postura não for refletida em todas as camadas, a marca anda, no máximo, lateralmente. As ações devem construir o discurso”, afirma Rachel Maia, fundadora e CEO da RM Consulting, que dá suporte a iniciativas de diversidade, inclusão e sustentabilidade para empresas como Vale, Banco do Brasil e CVC, além de presidir o Conselho Consultivo da Unicef Brasil. Muitas das maiores corporações internacionais, inclusive, têm investido nesse tipo de estrutura interna para garantir representatividade e um discurso mais alinhado, além de ações que vão além do marketing e impactam no dia a dia – dando legitimidade em todos os movimentos corporativos. A Unilever, por exemplo, conta com o Proud, grupo LGBTQIAP+ com mais de cem integrantes, responsável por gerar e amplificar pautas internas e externas sobre a causa para todos os colaboradores da companhia. Já a Johnson & Johnson estruturou cinco grupos de afinidade conduzidos por colaboradores e líderes de negócios, com temas que vão de liderança feminina a questões raciais e de portadores de habilidades especiais. Na P&G, o próprio CMO global, Marc Pritchard – uma

das grandes referências do marketing atual –, se tornou o principal porta-voz dos projetos de diversidade da empresa, especialmente envolvendo inclusão racial e de gênero.

Para algumas empresas, a mudança representa um redirecionamento relevante. No caso da marca de cosméticos Avon no Brasil, todo o foco se voltou para grupos até então invisibilizados na propaganda. Depois de uma história centenária direcionada apenas ao público feminino tradicional, a marca vem renovando sua comunicação e posicionamento em direção a uma linguagem mais jovem e plural, com representantes de diferentes idades, raças, corpos, gêneros e estilos. Uma das primeiras a estrelarem campanhas da marca nesse sentido foi a cantora trans Candy Mel. “Como uma empresa originalmente criada para mulheres – muito antes de elas poderem votar –, a Avon tem a diversidade como parte de seu DNA em qualquer lugar do mundo. As nossas campanhas estão alinhadas a esse propósito que, conforme evolui nas discussões da sociedade, também ajuda a nos reinventar, inovar e ampliar o diálogo com todos os públicos”, explica Danielle Bibas, vice-presidente de marketing da Avon. A linguagem da Natura, controladora da companhia, começa a incorporar mais diversidade. Para a última campanha do Dia dos Pais, em agosto, a empresa contratou o médico Thales Bretas, pai de gêmeos e que perdeu o marido, o humorista Paulo Gustavo, após uma longa batalha contra a covid-19.

Nenhuma iniciativa está livre de polêmica. Uma das campanhas de maior repercussão ligadas ao último Dia do Orgulho, em junho, foi Como explicar?, criada pelo Burger King e a agência David. O filme central mostrava crianças em depoimentos espontâneos sobre o que achavam de relacionamentos LGBTQIAP+. Nas redes sociais, o trabalho foi massacrado pela ala conservadora, desde discursos de boicote e amor ao concorrente Mcdonald’s a acusações de “lavagem cerebral” e “apologia à pedofilia”. “Vimos quanto o preconceito é travestido de inúmeras reações. Nunca quisemos fazer nem fizemos pregação para as crianças, mas sim ouvimos a opinião delas com naturalidade. No final, vimos que os nossos consumidores de verdade, especialmente o público mais jovem, achou superpositivo e se sentiu representado”, afirma Ariel Grunkraut, vice-presidente de vendas, marketing e tecnologia do Burger King. O executivo conta que a campanha passou por pesquisa, psicólogos, consultores de diversidade e – claro – avaliação do jurídico.

Em números, a campanha acabou se tornando em pouco tempo a de maior repercussão da história da marca, com 10 bilhões de impressões. De acordo com pesquisa do próprio BK, mais de 60% da população brasileira tomou conhecimento da iniciativa, e 70% desse público a considerou “boa” ou “muito boa”. Para 77% do público, a imagem da marca se manteve igual ou melhorou. “O Burger King é uma marca jovem e democrática, mais indexada aos jovens, um público com muito menos preconceitos. Claro que não queremos excluir ninguém, pelo contrário, mas temos nosso posicionamento bem claro e, nesse universo, ele é muito bem-aceito”, afirma Grunkraut. “O segredo é conhecer profundamente o seu consumidor.” Esse mandamento é básico de qualquer negócio. Usá-lo em iniciativas com a dose adequada de ousadia e coerência, no entanto, não tem nada de óbvio.

NENHUMA INICIATIVA ESTÁ LIVRE DE POLÊMICA – MAS A REAÇÃO PRECISA MOSTRAR CONSISTÊNCIA

SUMÁRIO

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2021-09-01T07:00:00.0000000Z

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