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Alvo móvel

AS VELHAS – E AS NOVAS – EMPRESAS DESSA INDÚSTRIA ESTÃO CONSTRUINDO A PLATAFORMA DE INOVAÇÃO ABERTA MAIS TRANSFORMADORA DA ATUALIDADE

ROBERTA PADUAN

Como a indústria de veículos virou uma grande plataforma de inovação aberta

EM 1914, PIERRE SAMUEL du Pont comandava a então já centenária Dupont quando decidiu investir numa pequena empresa privada, com seis anos de existência, chamada General Motors. Os anos seguintes provaram que a aposta havia sido certeira. As vendas da montadora, que havia se tornado pública em 1916, cresciam 56% por ano. Ao final da Primeira Guerra, em 1918, a companhia já tinha 85 mil funcionários e começava a construir uma sede em Detroit, o epicentro de uma revolução inédita da mobilidade, na época. Numa mescla de objetivos financeiros e estratégicos, o interesse da Dupont estava também em ampliar a demanda por produtos de seu portfólio, como couro artificial, plásticos e tintas.

Surgia ali o primeiro investimento corporativo de capital de risco de que se tem notícia.é curioso notar que o mesmo recurso tem sido uma das pontas de apoio para a transformação mais radical na indústria automobilística desde sua origem, há mais de um século. A maior montadora do mundo, a japonesa Toyota, lançou o próprio fundo de venture capital em 2017. Hoje com sede no Vale do Silício, a Toyota Ventures possui mais de US$ 500 milhões de ativos sob gestão e já investiu em 38 empresas em áreas como inteligência artificial, computação quântica e robótica avançada.

Em outro esforço para testar novas ideias, a companhia decidiu construir uma cidade do zero, aos pés do Monte Fuji, no Japão, para servir como um laboratório de desenvolvimento de novas tecnologias de mobilidade. A Woven City – ou Cidade Entrelaçada, em tradução livre para o português, e que remete à origem da empresa, que fabricava teares – será uma espécie de campo de provas para veículos autônomos. Servirá também ao desenvolvimento de energias limpas, como eletricidade gerada à base de hidrogênio, elemento extraído do ar e da água, e que já movimenta o Mirai, um dos carros que transportam o Papa Bento 16. A cidade do futuro terá ruas, avenidas, residências, prédios comerciais e, claro, moradores. A estimativa é que cerca de 400 pessoas, entre funcionários, cientistas e formadores de opinião, estejam morando na Woven City em sua inauguração, marcada para 2024. A população total deve chegar a 2 mil pessoas de todas as idades, incluindo as com dificuldade de locomoção. Elas ajudarão a companhia a aprimorar modelos de exoesqueletos, que já são usados em fábricas da empresa para evitar lesões em funcionários. O plano é que essas estruturas acopladas ao corpo ajudem também idosos, por exemplo, a se movimentar com mais facilidade dentro e fora de casa.

A cidade do futuro, segundo a montadora, deve priorizar as pessoas, e ser tão livre de poluição quanto possível. A ideia é que a fumaça de combustíveis fósseis seja substituída pela emissão zero da energia solar ou pelo vapor d’água, resultante das células a combustível de hidrogênio. O plano é que tudo esteja conectado: carros, ônibus, patinetes, semáforos, postes de luz, viaturas de polícia, ambulâncias, celulares de pedestres. Tanta conexão deve ajudar a aumentar a segurança, a fluidez do trânsito, além de economizar energia, água, tempo.

A empreitada da Toyota é apenas um dos sinais da tremenda transformação pela qual o setor automotivo vem passando. A alemã Volkswagen, ao lado de concorrentes como a Ford, colocou bilhões em companhias como a americana Argo AI (“AI” é a sigla em inglês para inteligência artificial). Empresas de tecnologia, como Google e Apple, também começam a se embrenhar pelo setor automotivo. “O carro se transformou em uma ampla plataforma de inovação em frentes tão diversas como energia renovável, inteligência artificial, radares 3D, cybersegurança, robótica, 5G, internet das coisas, smart cities e edge computing”, afirma Roberto Frossard, diretor de Tecnologia e Inovação da Accenture para Estados Unidos, Canadá e América Latina. “O setor automotivo está passando pela maior transformação de sua história. A evolução que teremos nos próximos cinco anos será maior que as mudanças que vimos nos últimos cem”, afirma Airton Cousseau,

presidente da Nissan para o Mercosul.

O fato é que o avanço das tecnologias digitais e das redes móveis de quinta geração (o esperado 5G, que ainda não chegou ao Brasil) está transformando carros, caminhões e todo tipo de veículo em verdadeiros computadores ou smartphones sobre rodas. Sim, estamos chegando cada vez mais perto dos chamados veículos autônomos, cujo nível mais avançado poderá rodar por aí sem volante, sem pedais e sem motorista. Estima-se que até 2030 um em cada dez veículos será autônomo. A informação é do novo Dossierplus, da Statista.

As molas propulsoras de mudanças não param por aí. A necessidade de reduzir emissões de gases do efeito estufa, com prazos anunciados por países e empresas, vem forçando a indústria a transformar também seus motores – o coração do seu produto, que funcionou basicamente à base de petróleo por mais de um século. “É um momento único, porque são várias frentes de mudanças muito grandes e simultâneas”, afirma o italiano Antonio Filosa, CEO da Stellantis para a América do Sul, criada em janeiro com a fusão da FCA (Fiat Chrysler Automotive) e PSA (Peugeot Citroën).

IMPOSSÍVEL INOVAR SOZINHO

A CEO da GM, Mary Barra, anunciou que vai investir US$ 35 bilhões entre 2020 e 2025 para transformar seus modelos em elétricos e avançar em direção autônoma. Num esforço paralelo, a empresa também mantém um fundo de venture capital, que já investiu em 52 empresas desde 2010 – das quais 24 se mantêm no portfólio. O objetivo é tomar a liderança dos elétricos da Tesla, de Elon Musk, nos Estados Unidos. Outro objetivo da GM é transformar sua imagem de companhia antiga, que produz modelos beberrões de petróleo, para uma empresa moderna, que persegue os “três zeros”, segundo Mary: “emissão zero, congestionamento zero e acidente zero”.

Tanto quanto de dinheiro, as fabricantes tradicionais de veículos perceberam que precisam de conhecimentos que não dominam. E chegaram à conclusão de que é impossível fazer tudo sozinhas. A GM, por exemplo, comprou a Cruise em 2016, uma startup criada três anos antes por Kyle Vogt, um engenheiro formado no MIT, que desenvolveu um sistema de direção autônoma. Atualmente, a Cruise

contabiliza mais de US$ 7 bilhões de investimentos da Honda, do Softbank e da Microsoft, além da GM.

Também é simbólico que a Volkswagen tenha transferido seu time de tecnologia de direção autônoma, com cerca de 200 funcionários, para a Argo AI, startup especializada em inteligência artificial e robótica. A gigante alemã investiu US$ 2,6 bilhões em 2020 na empresa fundada três anos antes, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. A Argo AI já havia recebido US$ 1 bilhão da Ford. Atualmente, Ford e VW controlam a empresa fundada por Bryan Salesky, um engenheiro da computação de 40 anos, que já trabalhou no Google. Vogt e Salesky são o tipo de profissional e empreendedor que aterrissou no setor automotivo nos últimos anos, e que logo alcançou lugar de destaque.

A divisão de direção autônoma do Google, em que Salesky trabalhou – e que se transformou em uma empresa independente, a Waymo –, foi iniciada em 2009, pelo alemão Sebastian Thrun, ex-professor de ciência da computação e de robótica das universidades americanas Carnegie Mellon e Stanford. Os carros-robôs projetados por Thrun vinham chamando a atenção de Sergey Brin, o chefão do Google, havia tempos. Em 2005, a equipe de corrida de carros autônomos de Stanford, liderada por Thrun, venceu a mais famosa competição da categoria, patrocinada pela Darpa (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa americano). Na ocasião, o Touareg, da Volkswagen, adaptado com softwares e equipamentos desenvolvidos pela equipe de Stanford, percorreu 212 quilômetros no deserto de Mojave, em Nevada, em 6 horas e 54 minutos. Sem motorista a bordo.

Atualmente, a Waymo tem uma frota de 600 veículos rodando em várias cidades americanas. A maior parte permanece em teste e com motoristas de segurança – que assumem a direção em caso de pane do sistema. Em Phoenix, no Arizona, uma pequena frota circula sem motorista de segurança, pelo aplicativo de táxi autônomo Waymo One. As viagens – a maioria com a van Pacifica, da Chrysler – só acontecem dentro de um perímetro definido, cujo terreno já foi milimetricamente estudado e registrado em mapas armazenados no sistema. As informações dos mapas são combinadas com as imagens da “visão artificial” do veículo, formada por câmeras, sensores e radares. A frota de autônomos em teste da Ford, constituída por exemplares do modelo Fusion e equipada com o sistema da Argo AI, também pode ser vista circulando em algumas cidades americanas, como Miami, mas sempre com motoristas de segurança no banco da frente.

Do outro lado do mundo, em Pequim, capital chinesa, o Baidu (equivalente ao Google na China) opera a frota de autônomos Apollo Go Robotaxi, desde maio. Os carros circulam em uma área de Pequim onde haverá jogos da Olimpíada de Inverno no próximo ano. O passageiro chama o carro pelo aplicativo e abre a porta por meio do QR code impresso na lateral do veículo. Em caso de emergência, um motorista humano assume o controle do carro remotamente, do centro de monitoramento da Apollo Go.

O desenvolvimento de carros autônomos – pelo menos o

de nível mais avançado, em que o veículo consegue circular sozinho, tomando decisões sem a necessidade do comando de uma pessoa de carne e osso – é dos desafios mais complexos para a indústria automotiva e também para governos. Trata-se de uma responsabilidade tremenda. Afinal, o potencial de estrago de um defeito em um smartphone é muito menor do que um eventual bug em um carro que roda sozinho por ruas, avenidas e estradas. A quantidade de softwares e equipamentos embarcados em um veículo autônomo é enorme, a começar pelas câmeras e sensores do lado de fora do veículo, que fazem com que ele tenha uma visão de 360º. Há ainda sistemas que usam Lidars (estruturas de luz a laser que localizam remotamente objetos e corpos e medem a distância que estão do carro). Sem contar as câmeras e sensores dentro do carro, que detectam os movimentos do rosto e dos olhos do motorista, capazes de flagrar se ele está usando o celular ou se caiu no sono, situações que fazem soar alarmes sonoros. O problema é ensinar a máquina a agir diante de uma infinidade de situações imprevisíveis. Por um lado, carros autônomos não se cansam, não cochilam ao volante, não ficam bêbados nem se distraem falando ao celular. Por outro, não conseguem (ainda) diferenciar um cone de um cachorro, um saco plástico de um pneu. Em março de 2018, um carro autônomo da Uber atropelou e matou uma mulher na cidade de Tempe, no Arizona. O Uber autônomo tinha motorista de segurança, como a lei manda. Mas a motorista estava distraída, assistindo ao programa The Voice pelo celular, revelaram as gravações da câmera interna do carro. A investigação realizada pelo departamento de trânsito americano também revelou que o carro não foi capaz de identificar a pedestre como uma pessoa, aparentemente porque ela estava fora da faixa de pedestre. Em abril deste ano, um táxi autônomo da Waymo parou no meio da rua enquanto levava um passageiro, por não entender uma fila de cones espalhada pelo pessoal de manutenção viária de Phoenix, no Arizona. O próprio sistema acionou a equipe de apoio remoto da Waymo, que explicou ao passageiro – pelo sistema de som do carro – que um motorista de carne e osso iria ao seu encontro para assumir a direção.

UM ELÉTRICO MOVIDO A ETANOL

A corrida pela eletrificação dos motores é outra seara fervilhante na indústria automotiva. O desafio é aumentar a autonomia das baterias e reduzir seu preço. Todas as fabricantes de veículos perseguem esse propósito, já que o carro elétrico é um caminho sem volta, forçado pela necessidade de segurar o aquecimento global. Os chineses são líderes

mundiais na produção dessas baterias, que vêm despencando de preço. Mas ainda fazem um modelo elétrico custar pelo menos 50% mais caro que um equivalente movido a gasolina. Nessa corrida, a Ford anunciou que vai inaugurar até o final do ano um centro de desenvolvimento de baterias para carros elétricos, em Michigan. Ao todo, a empresa deve investir US$ 22 bilhões entre 2021 e 2025 para eletrificar seus modelos mais populares. Ano passado, a empresa já havia inaugurado um centro de testes de baterias para carros elétricos. Já a GM revisou para cima – e pela segunda vez, de US$ 20 bilhões para US$ 27 bilhões e agora para US$ 35 bilhões – o investimento em eletrificação e em sistemas de direção autônoma. Boa parte vai para o desenvolvimento das baterias Ultium, que a companhia de Detroit está desenvolvendo em parceria com a coreana LG Chem.

Quando os preços dos veículos a bateria caírem para perto dos modelos a gasolina, o consumidor não terá o que pensar. O torque (ou arrancada) de um carro elétrico é muito mais potente do que o dos modelos tradicionais. O custo do veículo, no longo prazo, também deve ser bem menor que o de um a gasolina ou flex, no caso do Brasil. A manutenção tende a ser mais fácil e barata, já que os motores elétricos são bem mais simples que os a combustão – cerca de 200 componentes, um quinto dos motores convencionais. Troca de óleo? Não precisa mais pensar no assunto. Sem contar na economia do abastecimento, estimada em até 80% na comparação com a gasolina. É claro que ainda é preciso resolver o preço das baterias e a infraestrutura de carregamento, já que será necessário ter postos de abastecimento de eletricidade.

Embora bateria seja praticamente um sinônimo de carro elétrico, existem várias tecnologias de eletrificação. A célula de combustível a hidrogênio, aposta a Toyota, é uma delas. No caso da Nissan, a eletrificação também passa pelo etanol. Desde 2015, as equipes de engenharia do Japão e do Brasil vêm trabalhando no desenvolvimento

de uma célula que transforma etanol e água em eletricidade. A tração do carro é feita por um motor elétrico, mas a eletricidade vem da água e do etanol, armazenados no tanque. Em junho, a Nissan renovou a parceria com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), da USP, que vem trabalhando no aprimoramento da tecnologia.

A empresa já vem testando a tecnologia no Japão e no Brasil em um modelo do tipo furgão, mas ainda deve levar alguns anos para torná-la viável comercialmente. Um dos desafios é reduzir o tamanho dos equipamentos, para que possam ser embarcados em veículos menores. “É uma tecnologia inédita, ainda em estudo, mas que pode ser uma oportunidade espetacular não só para a Nissan, mas para o Brasil”, afirma Cousseau. Segundo o executivo, o plano é que as células de combustível sejam adaptadas para funcionar com gás natural e biogás, o que abriria novos mercados para a tecnologia. A célula de combustível derruba uma das barreiras que ainda impedem a popularização do veículo elétrico movido a bateria: a limitação da autonomia, pois pode ser abastecido em postos de combustíveis convencionais. Não é preciso, portanto, construir uma nova infraestrutura de eletropostos.

NOVOS MODELOS DE NEGÓCIOS

O avanço e a combinação exponenciais da tecnologia vêm promovendo outra transformação, a que afeta a relação do consumidor com o carro. Já aconteceu no segmento de hospedagem. Anos atrás, pouquíssimas pessoas aceitariam alugar sua casa ou mesmo um quarto no final de semana para um completo desconhecido. Pois hoje, o Airbnb é maior do que qualquer rede hoteleira do planeta, mesmo sem ter um único leito de hotel. Plataformas digitais, como Airbnb e Uber, viabilizaram a economia compartilhada, ao abrir espaço para pessoas e empresas de qualquer lugar do planeta fazerem negócio direto com o consumidor final. “As plataformas digitais não fabricam os bens, não constroem hotéis nem carros, mas vendem serviços – em geral, com ativos que não lhes pertencem – e começam a ficar com fatias cada vez maiores da receita do mercado”, afirma Arun Sundurarajan, professor da escola de negócios da Universidade de Nova York e autor do livro Economia Compartilhada. É uma revolução que tirou nacos importantes de renda de empresas tradicionais, e que as fabricantes de veículos não querem perder. Todas estão correndo atrás, criando serviços de carros por assinatura ou até empresas novas. A Kinto foi lançada pela Toyota em 2020 no Brasil, e um ano antes no Japão. “A nossa visão é expandir o leque, e transformar a companhia de uma empresa de produção e venda de veículos para uma empresa de prestação de serviços de mobilidade”, diz Roger Armellini, diretor de mobilidade da companhia no Brasil. A Kinto aluga carros não só por diárias, mas também por hora, além de administrar frotas. Quando a Woven City estiver funcionando, é a Kinto que vai alugar os carros, patinetes, robôs domésticos, por exemplo.

Para as montadoras, não é exagero dizer que toda essa movimentação será tão desafiadora como começar tudo de novo.

PARA AS MONTADORAS, NÃO É EXAGERO DIZER QUE TODA ESSA MOVIMENTAÇÃO SERÁ TÃO DESAFIADORA COMO COMEÇAR TUDO DE NOVO

SUMÁRIO

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2021-09-01T07:00:00.0000000Z

2021-09-01T07:00:00.0000000Z

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