Epoca Negocios

Jornada pessoal

PARA O VICE-PRESIDENTE DE NEGÓCIOS DA NATURA, TOMAR DECISÕES COLETIVAMENTE DÁ MAIS TRABALHO – MAS ESSE DEVE SER UM DOS MELHORES LEGADOS DA PANDEMIA

POR ERASMO TOLEDO* EM DEPOIMENTO A MARINA MONZILLO

Erasmo Toledo, da Natura: a pandemia radicalizou nossa cultura de decisões coletivas

SAIR DA PANDEMIA também não é simples. Enfrentamos a falta de matéria-prima que atingiu vários outros setores da indústria. Para as embalagens, não havia vidro e papelão. Em março deste ano, o navio encalhado que bloqueou o canal de Suez por seis dias também nos afetou nesse aspecto. Tinha uma pressão de custos muito altos que exigiu lidarmos com escassez de material. A velocidade de reação do mercado como um todo, principalmente no segmento de cuidados pessoais, foi surpreendente e nos pegou em um contrapasso. Tivemos um momento de muita troca de informação com outros setores, e foi de aplaudir o esforço da turma de operações na busca por alternativas.

O fato é que a pandemia tem ensinado a todos que a força do coletivo sobre o individual é muito maior. A situação nos levou para uma mesma posição – de sobrevivência. No objetivo comum de construção de uma saída, não há tanta dispersão, as pessoas se coordenam de forma muito mais rápida. Não acredito que existam heróis. Mas acredito que juntos podemos ir mais longe.

Lembro que fui para o escritório numa segunda-feira, após a primeira quinzena de março de 2020, que marcou a chegada da pandemia de covid-19 ao Brasil. Não encontrei quase ninguém trabalhando presencialmente. As pessoas tinham permanecido em casa. Não se falava em outra coisa na televisão. Pensei, naquele primeiro momento, que eu preferia continuar indo para o trabalho. Mas aquela ansiedade toda não estava só na mídia. Sou membro do comitê executivo da companhia [hoje com 12 vice-presidentes] que, imediatamente, se tornou um comitê emergencial. Entendemos que precisávamos pensar coletivamente sobre como conduzir aquela situação inédita.

O curioso – e desafiador – é que tínhamos recém-avançado para uma nova estrutura de governança, com a aquisição da Avon, menos de três meses antes, oficializada em 3 de janeiro de 2020. Com a chegada da Avon, a Natura, como grupo, havia ficado muito maior – com presença em mais de 110 países, 3,7 mil lojas próprias e franqueadas e 35 mil colaboradores. O comitê tinha ganhado três novos membros, vindos da Avon, e o novo grupo, naquela altura, havia se encontrado e interagido relativamente pouco ainda.

Aqueles primeiros dias exigiam decisões ágeis, mas dispúnhamos de pouca informação. Havia muita indefinição por parte dos governos. Tivemos de criar uma sintonia de forma muito rápida, com muitas reuniões, trocas de mensagens e ligações à noite uns para os outros. Não é fácil tomar decisões coletivas e, ao mesmo tempo, rápidas, ainda mais em meio a uma integração. Exige um exercício constante.

A primeira conclusão a que chegamos foi estabelecer três prioridades na Natura: barrar o contágio; cuidar das pessoas; e fazer o negócio continuar girando, porque havia toda uma rede que dependia dele. Assim como aconteceu no Brasil inteiro, primeiramente, fechamos os escritórios e as fábricas [no país, são quatro da Natura e uma da Avon]. Foi uma loucura aquela semana. Paramos operações que funcionavam 24 horas, espalhadas em várias localidades, além da malha de distribuição enorme. Deixamos de produzir itens de maquiagem e perfumaria temporariamente para redirecionar a produção para itens como álcool em gel, álcool líquido e sabonetes. O álcool líquido não faz parte do portfólio da marca, mas fabricamos em caráter de exceção e doamos a produção para hospitais e outras instituições [em abril deste ano, a doação total do grupo na América Latina havia passado de 150 mil litros de álcool líquido e 15 mil litros de álcool em gel; e aproximava-se de 3 milhões de sabonetes].

Também nos comprometemos a não demitir por 60 dias. Os colaboradores das áreas administrativas foram direcionados para home office, e os que trabalhavam nas fábricas passaram a atuar em esquema de rodízio, em quantidade reduzida. Quem tinha comorbidade teve licença remunerada.

As discussões sobre como operar, o que era essencial ou não, eram constantes. Os integrantes do comitê se encontravam diariamente para fazer esse acompanhamento, com subgrupos compostos por representantes convocados das principais áreas da empresa. Essa dinâmica passou a ser muito intensa.

Naquela segunda quinzena de março, começamos a implementar a estratégia de adequar os espaços para garantir a segurança sanitária. Organizamos doações, envio de máscaras e treinamentos. Cancelamos todos os eventos presenciais. Também voltamos nossa atenção para acolher os colaboradores, as consultoras e suas famílias.

A rede conjunta Natura e Avon tem 8 milhões de consultoras. Muitas dessas pessoas continuaram saindo de casa para garantir sua renda [cerca de 1,2 mil consultoras faleceram, vítimas da pandemia]. Criamos um fundo de amparo às pessoas impactadas pela covid-19, com apoio econômico e psicológico às nossas consultoras e representantes, principalmente àqueles mais vulneráveis. Estimulamos a rede da Natura a virar um mutirão do bem: fornecemos insumos

A EMPRESA NASCEU DE UM MODELO DE DECISÃO COMPARTILHADA. ISSO PERMEIA NOSSA ATUAÇÃO ATÉ HOJE

e conhecimento para que as pessoas pudessem replicá-los.

Entre as decisões difíceis a tomar ao longo da pandemia, também entramos em um regime de rigorosa disciplina financeira. Tínhamos de fazer frente ao nosso primeiro ano de integração bem em meio àquele cenário. Isso se refletiu na confiança dos nossos acionistas, e conseguimos reforçar a estrutura de capital com uma bem-sucedida conclusão de oferta pública de US$ 1 bilhão em ações, em outubro de 2020 [a Natura também captou mais US$ 1 bilhão em abril de 2021 com uma emissão de “green bonds”, títulos atrelados a metas ambientais até 2026].

Ao tomarmos as medidas necessárias de segurança e sempre acompanhando as resoluções governamentais, voltamos a operar. Nunca perdíamos de vista que a Natura, como corporação, conseguiria aguentar a crise, mas e todo mundo em volta? Pequenos negócios, consultoras, fornecedores, clientes?

A empresa já vinha vivendo um processo de digitalização que dava condição de reforçar o ‘fique em casa’, ao mesmo tempo em que fornecia meios para que o negócio continuasse acontecendo. Em uma das conversas que tive com as consultoras depois do início da pandemia [essas reuniões ocorrem a cada 45 dias; antes eram presenciais, agora são online], uma senhora do Rio de Janeiro contou que tinha um salão de beleza e vendia nossos produtos. Do dia para a noite, teve de fechar; a família não a deixou continuar, porque ela tinha várias comorbidades. Em casa, com a ajuda da filha, aprendeu a usar as ferramentas digitais da Natura. Comemorava conosco que, dois meses depois, já estava com mais clientes do que antes.

Acredito que essas histórias de transformação vividas em meio a uma situação de restrição aconteceram porque nos movimentamos juntos, integrados, buscando entender o que cada um precisava e como poderia contribuir.

Foi bastante complexo, mas contou a favor a nossa cultura. A Natura nasceu de um modelo de decisão compartilhada. Quando você olha para a história da companhia, vê três personagens muito fortes: seu Luiz [Antônio Luiz Seabra], Guilherme [Leal] e Pedro [Luiz Barreiros Passos], cada um com seu ponto de vista, fazendo uma construção conjunta. Isso permeia a forma como a Natura atua hoje. Claro que tem seus prós e contras, mas acredito que a diversidade de opiniões constrói soluções mais criativas e inovadoras. Também tomamos a iniciativa de ir a público, na mídia, comunicar à sociedade sobre as nossas ações e o nosso posicionamento. Foi a estratégia fundamental para potencializar o que nossa organização tem de melhor: a força de rede.”

*ERASMO TOLEDO é vice-presidente de Negócios da Natura e o principal executivo na operação da empresa no Brasil

SUMÁRIO

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2021-09-01T07:00:00.0000000Z

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